O Lausperene Quaresmal, delimitado pela Quarta-Feira de Cinzas e pela
Quinta-Feira Santa, é uma das mais peculiares práticas devocionais da cidade de
Braga. Anualmente replicado num itinerário com vinte e três etapas agendadas
nos principais e mais emblemáticos templos da zona urbana, é uma prática que já
ultrapassou os três séculos de existência. Esta prática nasceu por iniciativa
do Arcebispo D. Rodrigo de Moura Telles em 1710 e desde aí nunca mais cessou de
marcar presença no quotidiano dos bracarenses.
Para os cristãos bracarenses, esta é uma altura especial do ano, e para
as paróquias e confrarias responsáveis pelos templos também se torna um momento
privilegiado. As igrejas são decoradas primorosamente com flores, velas e
monumentais cortinas, contrastando com a austeridade que os cânones litúrgicos
aconselham por estes tempos quaresmais.
O trono eucarístico, habitualmente localizado ao centro do altar-mor,
continua a ser o lugar por excelência da adoração eucarística. A porta
principal da igreja é vedada com uma enorme cortina púrpura e, junto à entrada
da mesma, acolhem-se as habituais “rebuçadeiras”, que têm o ofício de tentar os
fiéis com os tradicionais “rebuçados do Senhor” embrulhados em papéis
multicolores.
As tribunas continuam a ser o
lugar preferencial para a realização do Lausperene Quaresmal, facto que permite
a valorização do património artístico habitualmente vedado por telas ou
cortinas. A sua conjugação com outros elementos decorativos – castiçais, damascos,
grinaldas, flores – torna o cenário singular. Esta tradição bracarense,
impregnada de um âmbito religioso e devocional, também integra uma perspetiva
estética, dado que as igrejas da cidade adquirem uma particular beleza durante
os dias em que são “visitadas” pelo Lausperene Quaresmal. Entre flores e
castiçais, cortinas e luminosidade, muitos templos continuam a optar pela
exposição eucarística nas tradicionais tribunas que, em muitos casos, só são
exibidas ao público nesta altura do ano. Por isso mesmo, dando seguimento ao
desejo de valorização do património cultural, deveremos promover a utilização
das tribunas durante o Lausperene Quaresmal, ato que, não apenas protege essas
estruturas de uma progressiva deterioração, mas também respeita a genuinidade
de uma prática devocional com mais de três séculos de existência.
Recorde-se que no “Ritual
Romano para a Sagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa”,
se refere a este propósito que “se a
exposição se prolongar por bastante tempo, e no caso de se usar a custódia, pode
utilizar-se um trono colocado em lugar mais elevado”. Esta
recomendação não exclui a utilização do trono, apenas desaconselha caso “seja
demasiado alto e distante”. Devido a uma interpretação literal desta
recomendação, ou por outras motivações, alguns templos acabaram por abandonar a
utilização das tribunas durante o Lausperene Quaresmal, facto que retira a
peculiaridade a esta prática devocional. Aliás, no ponto 86 do mesmo documento
se refere que “nas igrejas e oratórios em que se conserva a Eucaristia,
recomenda-se que se faça todos os anos uma exposição solene do Santíssimo
Sacramento prolongada por algum tempo”, ou seja, recomenda-se que, pelo menos
uma vez no ano, a exposição eucarística se faça com maior solenidade do que as
práticas devocionais que se costumam realizar ordinariamente. Esta exortação
vai de encontro ao costume enraizado nas igrejas da cidade de Braga desde 1710.
Como não nos deixarmos impressionar pela primorosa tribuna do
retábulo-mor da Igreja de Santa Cruz, saída da inspiração de Frei José Vilaça,
e que apenas nestes dois dias se pode admirar no seu particular aparato? Ou
então as singelas, mas tão características, tribunas guardadas ao centro do
altar-mor da Penha de França ou do Salvador cujo adorno especificamente
realizado para o Lausperene Quaresmal nos permite valorizar o património ali
exposto? E como seria se templos de grandes dimensões como o Carmo, Congregados
ou S. Victor retomassem o seu “Lausperene” nas tão proeminentes tribunas que
ocupam o centro das respetivas capelas-mores?
Além de um exercício piedoso, o Lausperene Quaresmal é uma manifestação
cultural que potencia a valorização do património móvel e monumental. Como pode
a Igreja Católica, num tempo de aggiornamento, em que se propõe abrir as
portas à sociedade e ao diálogo com a cultura, fechar as portas a uma
oportunidade rara de convocar a população para os seus templos, contribuindo
igualmente para deteriorar uma tradição com três séculos de existência?
Rui Ferreira
Presidente da Direção da Braga Mais
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