domingo, 27 de março de 2022

+ CIDADANIA: Não deixar morrer o Lausperene Quaresmal

 


O Lausperene Quaresmal, delimitado pela Quarta-Feira de Cinzas e pela Quinta-Feira Santa, é uma das mais peculiares práticas devocionais da cidade de Braga. Anualmente replicado num itinerário com vinte e três etapas agendadas nos principais e mais emblemáticos templos da zona urbana, é uma prática que já ultrapassou os três séculos de existência. Esta prática nasceu por iniciativa do Arcebispo D. Rodrigo de Moura Telles em 1710 e desde aí nunca mais cessou de marcar presença no quotidiano dos bracarenses.

Para os cristãos bracarenses, esta é uma altura especial do ano, e para as paróquias e confrarias responsáveis pelos templos também se torna um momento privilegiado. As igrejas são decoradas primorosamente com flores, velas e monumentais cortinas, contrastando com a austeridade que os cânones litúrgicos aconselham por estes tempos quaresmais.

O trono eucarístico, habitualmente localizado ao centro do altar-mor, continua a ser o lugar por excelência da adoração eucarística. A porta principal da igreja é vedada com uma enorme cortina púrpura e, junto à entrada da mesma, acolhem-se as habituais “rebuçadeiras”, que têm o ofício de tentar os fiéis com os tradicionais “rebuçados do Senhor” embrulhados em papéis multicolores.

                As tribunas continuam a ser o lugar preferencial para a realização do Lausperene Quaresmal, facto que permite a valorização do património artístico habitualmente vedado por telas ou cortinas. A sua conjugação com outros elementos decorativos – castiçais, damascos, grinaldas, flores – torna o cenário singular. Esta tradição bracarense, impregnada de um âmbito religioso e devocional, também integra uma perspetiva estética, dado que as igrejas da cidade adquirem uma particular beleza durante os dias em que são “visitadas” pelo Lausperene Quaresmal. Entre flores e castiçais, cortinas e luminosidade, muitos templos continuam a optar pela exposição eucarística nas tradicionais tribunas que, em muitos casos, só são exibidas ao público nesta altura do ano. Por isso mesmo, dando seguimento ao desejo de valorização do património cultural, deveremos promover a utilização das tribunas durante o Lausperene Quaresmal, ato que, não apenas protege essas estruturas de uma progressiva deterioração, mas também respeita a genuinidade de uma prática devocional com mais de três séculos de existência.

Recorde-se que no “Ritual Romano para a Sagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa”, se refere a este propósito que “se a exposição se prolongar por bastante tempo, e no caso de se usar a custódia, pode utilizar-se um trono colocado em lugar mais elevado”. Esta recomendação não exclui a utilização do trono, apenas desaconselha caso “seja demasiado alto e distante”. Devido a uma interpretação literal desta recomendação, ou por outras motivações, alguns templos acabaram por abandonar a utilização das tribunas durante o Lausperene Quaresmal, facto que retira a peculiaridade a esta prática devocional. Aliás, no ponto 86 do mesmo documento se refere que “nas igrejas e oratórios em que se conserva a Eucaristia, recomenda-se que se faça todos os anos uma exposição solene do Santíssimo Sacramento prolongada por algum tempo”, ou seja, recomenda-se que, pelo menos uma vez no ano, a exposição eucarística se faça com maior solenidade do que as práticas devocionais que se costumam realizar ordinariamente. Esta exortação vai de encontro ao costume enraizado nas igrejas da cidade de Braga desde 1710.

Como não nos deixarmos impressionar pela primorosa tribuna do retábulo-mor da Igreja de Santa Cruz, saída da inspiração de Frei José Vilaça, e que apenas nestes dois dias se pode admirar no seu particular aparato? Ou então as singelas, mas tão características, tribunas guardadas ao centro do altar-mor da Penha de França ou do Salvador cujo adorno especificamente realizado para o Lausperene Quaresmal nos permite valorizar o património ali exposto? E como seria se templos de grandes dimensões como o Carmo, Congregados ou S. Victor retomassem o seu “Lausperene” nas tão proeminentes tribunas que ocupam o centro das respetivas capelas-mores?

Além de um exercício piedoso, o Lausperene Quaresmal é uma manifestação cultural que potencia a valorização do património móvel e monumental. Como pode a Igreja Católica, num tempo de aggiornamento, em que se propõe abrir as portas à sociedade e ao diálogo com a cultura, fechar as portas a uma oportunidade rara de convocar a população para os seus templos, contribuindo igualmente para deteriorar uma tradição com três séculos de existência?

 

 

Rui Ferreira

Presidente da Direção da Braga Mais

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